Um dia, conversando com uma das maiores autoridades científicas em cimento do mundo, a professora inglesa Karen Scrivener (na época, eu era o Diretor de Inovação, Sustentabilidade e P&D da InterCement, uma das dez maiores empresas do setor no mundo), eu perguntei por que a minha empresa deveria participar do programa coordenado por ela na Polytechnique de Lausanne se os resultados obtidos no programa seriam publicados de qualquer maneira.
A resposta dela foi desconcertante, reveladora e brilhante: “só os acertos são publicados e eu aprendi muito mais com meus erros”.
No Programa HousingPact temos enorme apreço ao conhecimento estruturado, acadêmico, conceitual e à experiência de campo. Os problemas da sociedade são complexos demais para acordarmos uma manhã e tentarmos soluções isoladas e milagrosas. Os fundamentos do programa, portanto, se baseiam em temas há muito estudados por pessoas competentes e que dominam com excelência blocos de conhecimento sobre os quais desenvolvemos nossa prática.
No entanto, também é essencial a experiência de campo, a prática, as mãos sujas e o calor da atuação local. Acompanhar estes dois lados da moeda do conhecimento é fundamental para a evolução.
É justamente este aprendizado prático, agora em seu quarto ano de HousingPact, que quero compartilhar. Temas que não estão nos livros e nas teses, mas também outros que estão, porém sem aqueles detalhes que presenciamos no dia a dia. Não sei se é verdade que o diabo mora nos detalhes, mas que ele nos puxa pelo pé todos os dias, isso podemos garantir.
Após alguns anos de erros e acertos (às vezes acho que mais erros que acertos) trago a nossa melhor lista de armadilhas nessa trajetória em prol do empreendedorismo socioambiental.
1) Esquecer que se trata de negócios
Muitas vezes, quando estamos discutindo negócio de impacto, focamos no impacto e nos esquecemos do negócio. A iniciativa em questão precisa ser pensada como um negócio, com lógica de negócio. Precisa fazer dinheiro e com isso garantir seu crescimento para fazer mais dinheiro. Essencial, é claro, que nessa jornada, ela cause impacto positivo.
Nada contra iniciativas sem fins lucrativos, nada contra a dinâmica da filantropia estratégica, mas é outro animal. Fundamental para alguns problemas da sociedade, mas a ideia do empreendedorismo de impacto é usar o que há de bom no capitalismo, sua objetividade, sua eficácia na alocação de capital, sua dinâmica, sua capacidade de gerar recursos, para criar valor para o maior número possível de stakeholders.
Ao querer desenvolver empreendedorismo de impacto, fuja de iniciativas que podem causar impacto mas que não sejam empreendedorismo
2) Se contentar com avaliações subjetivas e qualitativas
Toda análise, toda tomada de decisão envolve aspectos subjetivos. Nem tudo pode ser colocado em números, mas muita coisa pode.
Avaliações objetivas e quantitativas ajudam muito a tomada de decisão, a alocação de recursos. E somos levados a pensar que se não foré possível uma análise objetiva e baseada em números, então o que nos resta é desenrolar uma série de elementos quantitativos na esperança de vencer o interlocutor pelo cansaço.
Não é bem assim. Atualmente existem métodos que utilizam estratagemas para objetivar elementos de difícil avaliação. O S-ROI, por acaso, é um deles, escolhido por nós.
No que diz respeito à avaliação de iniciativas, hoje sabemos que não se escolhe entre dois extremos, mas todo um universo contínuo onde podemos decidir onde atuar.
Como disse Keynes “é melhor estar aproximadamente certo do que precisamente errado”
3) Pensamento estreito quanto ao financiamento
Fomos acostumados a pensar que existem dois tipos de financiamento para criar algo: de um lado aquele que promete trazer um retorno para o investidor como resultado direto da aplicação do recurso, que é o mundo dos banqueiros de cartola, bengala e cheios de maldade e no outro extremo, aquele que não tem o retorno de capital. Neste último estão recursos de fomento e filantropia. Ou seja, um capital “for profit” e um “for good”.
Se foi assim um dia, hoje não é mais. Existe entre esses dois, inúmeras alternativas onde o capital reconhece o retorno socioambiental como algo não quantificável, mas nem por isso, inexistente. Existem capitais mais “pacientes”, acreditando que eles trazem outro valor para os stakeholders para além do financeiro.
Entre os dois extremos está o mundo do empreendedorismo social ou socioambiental.
Como se não bastasse o amplo espectro de capitais que “pensam diferente”, existem as iniciativas de composição de recursos financeiros de diversas origens. Desde aquele que dá o que muitos chamam de “retorno de mercado” até o filantrópico a fundo perdido. Esse movimento é chamado por alguns de “blended funding” ou “financiamento misto”, numa tradução livre.
O mundo está mais complicado, mas isso significa também que hoje temos soluções que não existiam antes.
4) Iniciativas que funcionam no powerpoint
Eu nunca vi um plano estratégico ou um business plan que mostrasse um resultado negativo. E isso é óbvio! Mas é óbvio também que uma grande parte deles não dá certo.
Um dos maiores problemas do ecossistema de empreendedorismo (e isso vale para TODO o ecossistema, inclusive para todos os potenciais unicórnios) é que as empresas precisam sair do plano do excel e da apresentação do powerpoint e vingar no mundo real.
Boa parte do ecossistema, não apenas as startups, mas aceleradoras, incubadoras, fundos de VC, assessores e consultores trabalham até ter o melhor powerpoint possível. O problema óbvio é que alguém tem que entregar o que foi prometido depois. Esse é o momento em que o empreendedor é fotografado pendurado com o pincel na mão, mas já sem escada e às vezes sem as calças.
É fundamental a continuidade do desenvolvimento em um primeiro período em que a empresa opera num mercado real. Aí é que os verdadeiros problemas vão aparecer.
Foi esta constatação que no HousingPact culminou nos nossos pilotos. Por isso os pilotos viraram backbone da jornada.
Quem não tem um bom plano nem sai de casa, mas quem não executa bem, não volta.
5) Ponto de vista deslocado
Surpreendentemente, muitas das startups de impacto social têm empreendedores socialmente privilegiados e isso é muito bom. Significa que hoje se reconhece que os problemas são de todos e todos que desenvolvem um senso de propósito podem e devem ajudar, mas muitas vezes falta o ponto de vista de quem de fato convive com as dificuldades que esse ecossistema supostamente deve ajudar.
É possível se apropriar de um ponto de vista diferente? Talvez não, mas certamente abrir os olhos a esta questão é um passo nessa direção.
6) Falta de cuidado com as heterogeneidades
Há alguns anos vemos o mercado inundado com iniciativas estruturadas de desenvolvimento de empreendimentos e empreendedores. Processos de aceleração, programas corporativos, portfólios de institutos e fundações, cursos presenciais e online. Muitos deles têm muitíssimos pontos positivos. Todo esse movimento tem elementos tão bons quanto necessários.
Mas um dos problemas que muitas vezes escolhemos ignorar, é que quando envolvemos múltiplas iniciativas em paralelo, existem diferenças entre diferenças; entre as empresas, entre os empreendedores, enfim se existem questões mais genéricas, existe também uma enorme camada de questões particulares.
Muitas vezes preferimos ignorar isso porque é extremamente difícil de tratar. Não é raro encontrar dois empreendedores em uma sessão de aceleração; um nunca viu aquele tema e o outro tem mais experiência nele que o próprio instrutor.
Tentativas de personalizar esta problemática como, por exemplo, programas de mentorias, tem baixa efetividade. Entre um levantamento não exaustivo (que é o termo que usamos para dizer que falamos com alguns empreendedores sem metodologia de pesquisa), a maioria declara que o processo não auxiliou e muitos deles dizem que o maior objetivo em se juntar a um programa desses, é tentar acesso ao network pessoal do mentor.
As tentativas que desenvolvemos de individualização são extremamente demandantes, mas tendem a funcionar bem.
Este ainda é um tema em aberto que vale a pena acompanhar.
7) Tentar fazer sozinho
O tamanho dos desafios que temos pela frente é paralisante. Sua complexidade, crescente. A única coisa que tenho certeza é que não existe um agente, por mais recursos que tenha à sua disposição, capaz de enfrentá-los sozinho.
Foi assim que nasceu nosso programa.
Uma tentativa de articular diversos agentes para que cada um traga para a mesa seus recursos.
Recursos diferentes, cabeças diferentes, experiências diferentes, compartilhando mutuamente na busca de novas soluções. A força da rede está na diversidade de seus participantes.
A criação e a execução de uma agenda conjunta é um desafio por si só.
Ainda não dominamos este aspecto, ainda não sabemos o jeito certo, mas já sabemos de um monte de coisas que não funcionam. E isso já vale algo.